- Violência doméstica é crime público e é dever do cidadão testemunhar. Não podemos ficar calados.
-Mas eu não vi nada!
- Então é isso que diz na audiência de julgamento.
- Mas se eu não vi nada e estou a declarar que não vi nada, porque é que vou a audiência de julgamento dizer que não vi nada? Se já sabem que não vi nada, poupavam tempo a todos e não me chamavam, certo?
- Não. O ministério público constitui-a como testemunha e terá que comparecer. Nessa altura terá oportunidade de dizer que não viu nada.
***
E aqui estou eu, numa pequena sala rectangular, com mais 3 testemunhas, debaixo de um silêncio ensurdecedor e de uma imensa luminosidade. Salienta-se o facto da porta ter uma placa que diz testemunhas. Ainda procurei outra sala, dado eu não ter nada para testemunhar, mas todas diziam o mesmo, pelo que optei pela sala mais próxima da saída (nunca se sabe).
Ao meu lado, a vizinha da vítima, uma loiraça de cerca de 60 anos, com umas botas altíssimas fantásticas e chiquíssimas, se ela não estivesse tão contra o mundo, ainda me fazia amiga dela, mas ela está demasiado ocupada a referir que não sabe o que está aqui a fazer, que não viu nada e como tal não é testemunha coisíssima nenhuma (o discurso parece-me familiar). À minha frente está o formador da vítima, que encoraja o discurso da loiraça e acrescenta que desconhece quem lhe irá pagar o dia de trabalho, uma vez que está a faltar e como trabalha a recibos verdes e blá blá blá. Ao lado dele, está a técnica de uma instituição que acompanha a vítima, com uns sapatinhos a fazer lembrar os do traje académico.
Sentadinhos e caladinhos das 9h30 às 13h, para então nos pedirem para sentar na 1ª fila da audiência de julgamento e notificar para um outro dia, “dado o adiantar da hora”. Bonito. Seguiu-se um momento de “conbíbio” digno de ser visto, com o arguido a proferir elogios amistosos às “testemunhas”. Como já não tenho problemas que cheguem, ainda tenho um fulano proveniente de bairro social, armado (e não é em parvo), agressivo e que já teve preso por agressão à autoridade e assalto à mão armada (resumo breve do seu curriculum vitae) que acha que vou testemunhar contra ele. E eu que não vi nada!
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